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Cerca de 31.229 km rodados, 135 apresentações realizadas em 166 cidades de cinco países: Brasil, Uruguai, Argentina, Chile e Paraguai. Assim foram os dois últimos anos dos artistas circenses que compõem a companhia Laguz Circo e Teatro: Felipe Abreu Pereira, natural de Fortaleza, e Romina Sanchez, da Argentina. Essa jornada, intitulada de “Travessia Ceará - Patagônia”, teve início em julho de 2022 e ocorreu a bordo de uma Kombi adaptada como motorhome. O destino? A Patagônia, local onde Romina já viveu. Entretanto, a viagem foi além, tendo como destino final Ushuaia, a Terra do Fogo, conhecida como “o fim do mundo”.
A ideia de explorar a Patagônia não surgiu de forma repentina. Em 2015, o casal já havia realizado uma viagem de carro, partindo de Florianópolis e chegando a Fortaleza, a bordo de um Fusca. Uma viagem que durou nove meses. Na época, Felipe sugeriu que o próximo desafio fosse ainda maior, ir até a Argentina, mas desta vez em uma Kombi. O sonho foi guardado por sete anos, enquanto o casal se estabilizava em Fortaleza e se dedicava ao trabalho.
A Kombi
Em 2018, os artistas compraram uma Kombi, modelo 2012, para facilitar a produção de espetáculos. No entanto, foi a pandemia que trouxe a reflexão necessária para tirar o sonho da gaveta. Com o setor cultural paralisado por mais tempo que outros segmentos, a dupla encontrou no Parque Adahil Barreto, em Fortaleza, um espaço para realizar apresentações ao ar livre, seguindo todos os protocolos de segurança. As apresentações “ao chapéu” se tornaram a fonte de renda que permitiu o investimento na transformação da Kombi em um motorhome.
A ajuda do público foi fundamental. Além das apresentações, o casal lançou um financiamento coletivo que permitiu a compra de um reboque, que serviu para o transporte dos equipamentos, enquanto a Kombi servia de veículo e, ao mesmo tempo, moradia. Para dar mais autonomia, o automóvel passou a contar com uma placa solar, que foi doada pela empresa 3E Soluções.
“Passamos um ano inteiro assistindo a vídeos de motorhomes no YouTube, decidindo como adaptá-la às nossas necessidades. Com apenas três ferramentas – parafusadeira, lixadeira e anticorte –, montamos nossa casa sobre rodas. Pensamos em cada detalhe, minimizando ao máximo o que levaríamos para otimizar o espaço. A Kombi acabou se tornando mais do que um meio de transporte; ela é nossa casa, nosso refúgio e parte da nossa identidade”, conta Romina.
Viagem e desafios
Com o motorhome pronto, Felipe e Romina partiram com o objetivo de levar seu trabalho artístico, incluindo dois espetáculos e oficinas de formação em artes circenses e palhaçaria, a novos públicos. A viagem, inicialmente prevista para durar um ano, se estendeu por dois. O ritmo foi ditado pela necessidade de trabalhar para seguir em frente, além do desejo de vivenciar plenamente cada lugar.
Durante a jornada, os desafios foram constantes. Para a viagem, os artistas fizeram um desapego completo, devolvendo a casa alugada e vendendo ou doando todos os pertences. Sem um lugar fixo para chamar de casa, a vida foi se desenrolando na estrada, adaptando-se ao espaço limitado da Kombi. Embora esse estilo de vida tenha suas recompensas, também há desafios. Em lugares frios, por exemplo, o espaço reduzido se tornou um incômodo e a falta de um banheiro interno demandou uma constante busca por alternativas.
A pré-produção foi essencial para garantir apresentações e, quando centros culturais ou secretarias de cultura não estavam disponíveis, os campings se tornaram uma alternativa viável. Em troca de hospedagem, o casal realizava apresentações e passava o chapéu, uma prática muito antiga feita por artistas itinerantes, de contribuições espontâneas e valorização do trabalho artístico.
O sul do Brasil se mostrou particularmente desafiador, levando o casal a adaptar suas estratégias e explorar diferentes formas de alcançar o público. No trajeto pela Argentina, locais independentes, ONGs e bibliotecas abriram suas portas para acolher os artistas. Cada parada se transformava em uma oportunidade de conectar, aprender e compartilhar. Além dos desafios logísticos, o clima também foi um fator importante. O casal planejou a chegada a Ushuaia antes do inverno rigoroso. Isso porque a adaptação às condições climáticas inclui itens específicos de segurança, como correntes ou pneus específicos para neve, o que demandaria organização e planejamentos adicionais.
“Durante a viagem precisamos recorrer à hospitalidade de pessoas e espaços culturais para carregar baterias de nossos equipamentos, tomar banho ou lavar roupas. Essas interações nos proporcionaram experiências ricas e inesperadas, como tomar café da manhã com famílias desconhecidas, que se tornaram amigos queridos”, lembra Romina.
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Toda a jornada rumo à Patagônia foi percorrida na companhia da Lamparina, cachorrinha dos artistas, que os acompanha desde os dois meses de idade. Atualmente com 9 anos, a aventureira de quatro patas já explorou diversas regiões do Brasil com os seus tutores e, nesta viagem, teve seu passaporte carimbado no Uruguai, Paraguai, Chile e Argentina. Durante os espetáculos, ela ficava dentro da Kombi e teve que se adaptar ao clima, usando, inclusive, roupas próprias para enfrentar o frio.
Romina conta que um dos momentos mais memoráveis da viagem ocorreu quando o casal conseguiu uma permissão especial para que Lamparina embarcasse no "Trem do Fim do Mundo", uma atração que normalmente não aceita cães. “Neste dia, um vagão foi liberado para que Lamparina aproveitasse o passeio com a gente. O staff do trem ficou encantado com a sua presença e quis registrar o momento inusitado com fotos”, conta.
Novos comportamentos
Na estrada, pequenas coisas, como lavar a louça ou tomar um banho, ganham um novo significado. A Kombi dos artistas, diferentemente de outros motorhomes, não possui um sistema de água e isso os fez adotar novos hábitos. Para lavar a louça, por exemplo, utilizavam a água de um galão de 5 litros com uma bombinha. E, para tomar banho, eles recorriam a postos com duchas, que encontravam através do aplicativo iOverlander, um banco de dados online onde estrangeiros e viajantes localizam diversos serviços com as dicas sobre as condições de segurança e conforto.
Durante o percurso, os artistas perceberam que também precisavam de momentos de descanso. Então, no planejamento, adotaram pausas estratégicas entre as viagens. Durante o mês de março, conhecido como o mês do circo, eles trabalharam intensamente na Bahia e, em seguida, reservaram 10 a 15 dias para descanso em um camping na Praia do Forte e em Itacaré. Essa abordagem permitiu que a dupla recarregasse as energias e apreciasse ainda mais os lugares que visitaram.
Olhando para o Futuro: cultura do Chapéu, projetos e editais
No futuro, os artistas planejam explorar novas oportunidades, que os permitam continuar viajando e apresentando seus espetáculos de forma mais estruturada, obtendo apoio por meio de editais e subsídios. Isso porque, no percurso dessa viagem, tiveram desafios burocráticos. “Atualmente, as oportunidades de apoio são limitadas a alguns formatos, como sedes do SESC e instituições culturais locais em regiões que visitamos, muitas cidades não possuem secretarias de cultura eficazes, ou elas estão sobrecarregadas com outras funções, como esportes. Isso dificultou a realização de nossos projetos em locais onde a cultura não era prioridade”, explica Felipe.
Após a jornada, Romina e Felipe também chegaram à conclusão sobre a necessidade de aventuras como essa, que busca levar a arte para outros públicos nos mais diversos locais do Brasil e até de outros países, possam ter apoio do poder público. “A partir desta experiência, vimos que é preciso que haja editais específicos para artistas itinerantes, que não exigem comprovante de residência e que possibilitem a continuidade do trabalho mesmo em cidades pequenas”, comenta Romina.
Outra questão é sobre a prática do “Chapéu”, que consiste na passagem do objeto pela plateia em troca de contribuições espontâneas e voluntárias. Uma forma simbólica de fortalecer a valorização do artista e de reconhecimento do público. Os artistas contam que há uma proibição por parte de editais e instituições que não entendem essa prática, que faz parte da cultura do artista de rua. “É preciso construir essa cultura. Acreditamos que a formulação de políticas e editais que apoiem diretamente essa forma de arte poderia facilitar a nossa integração e o desenvolvimento cultural em novos locais”, comenta Felipe.
Novos projetos, desafios e possibilidades
Agora, em Fortaleza, cidade natal de Felipe, a dupla segue morando no motorhome, tendo a casa de amigos como apoio para realizar atividades do cotidiano, como lavar roupa e tomar banho. Desta viagem, a dupla retornou com o anseio de novos projetos. Entre as possibilidades está um livro infantil com causos da viagem, um novo espetáculo inspirado nas experiências vividas nesses dois anos, abordando temas como itinerância e a questão da água, recurso que se mostrou escasso em diversas localidades visitadas, além de um jogo de tabuleiro que conta essa experiência e, ao mesmo tempo, ensina as crianças sobre mapas e localidades, com curiosidades e informações.
Para melhorar a experiência na estrada, os artistas pensam em, no futuro, fazer mudanças no estilo de vida e também do automóvel. A ideia é viver de forma mais tranquila e devagar, planejando viagens de curta distância e passando mais tempo em cada lugar. Esse ritmo permitirá estabelecer uma rotina, manter treinos necessários para os espetáculos e adaptar melhor o dia a dia às condições de cada lugar.
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